quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

“Palavras que saem do coração, antepostas às que do cérebro provêm, atribuem ao homem o risco da real felicidade. Entretanto, se aquelas advierem de maneira racional e lógica, o risco da felicidade existe, mas desta vez, de forma imaginária.”

( Airton de Barros )

O jogo do bicho

- Maria! Acorda! Vê lá se isso ainda é hora de dormir. Já são quase meio-dia...cadê o café?
Oito horas da manhã e, Nelson, o bicheiro, aparece, gritando sem vestígio de qualquer pudor, batendo nas portas e janelas na tentativa de levantar o máximo possível de pessoas e mantendo o ritual que, discreto e imperceptível, tornou-se uma tradição naquela casa: o jogo do bicho.
Agora que Nelson havia conseguido sua proeza, todos já estavam de pé, e levados por uma espécie de controle automático, iam puxando as cadeiras e formando uma roda, embalados pelo barulho da louça que batia na pia e anestesiados pelo aroma do café fresquinho que saia.
Aqueles que na casa não estavam dormindo, chegavam aos poucos - eram parentes, vizinhos e amigos que, ostentando caras de sono, não faziam objeção em sentarem no chão, posto que já não haviam mais cadeiras, porém, não sem antes tomarem um cafezinho, é claro.
O livro dos sonhos, já todo desfolhado, encontrava-se sobre a mesa, todos queriam saber quais as dezenas, centenas e milhares que correspondiam aos bichos, estes, identificados através da decodificação dos sonhos. Valia tudo para adivinhar qual bicho que sairia: usar o livro dos sonhos, queimarem palitos de fósforo no café líquido, mas, nada era comparável ao tão cobiçado palpite, principalmente o palpite do último ganhador.
- Então... eu sonhei que estava lavando uma alface quando, de repente, no meio dela, eu encontro uma cobra, vermelha e preta, acho que era coral...- narrava Zenaide, irmã de Maria, enquanto olhares atenciosos acompanhavam os gestos e micagens que ilustravam a narração- ...aí resolvi chamar o meu marido. Ele partiu a cobra ao meio e ela se dividiu, ficando ainda com uma parte viva, parte danada que deu conta de morder o Tim no braço...
- É cobra! Pode jogar cinco contos seco na milhar da cobra que você vai rachar a boca do balão...- falava Nelson, convicto e eufórico, dando ligeiros soquinhos na mão.
- Não! - interrompeu Zenaide - é pavão! Sonhar com o Tim é pavão. A última vez que eu sonhei com ele deu pavão na cabeça...
- Eu lembro! – Jandira, mãe de Zenaide, puxava a sardinha para o lado da filha -... Eu lembro! Quando Zêne sonhou com o Tim, passou o pavão, só que ela tinha jogado na águia...
- É por isso que dessa vez eu vou perseguir o pavão.
- Mas aqui no livrinho está escrito que sonhar com cobra é cavalo – comenta Maria contestando o palpite da irmã.
- Esse livrinho só engana a gente... – Jandira, agora um pouco exaltada - ...toda vez que eu sigo ele eu só tomo no...
- Mãe! – Eva, que acabara de chegar, repreendia-a – Olha as crianças.
As crianças eram Natty, Junior, Jaque e Tiago com respectivamente dezessete, dezoito, vinte e vinte e dois anos, provas vivas ocasionais que explicitavam o exagero industrial daquela família.
- Então, Evinha, você está com palpite em que hoje? – interrogou Eliete, vizinha de Maria, de pé em um banquinho do outro lado do muro.
- Ah! Tenho certeza absoluta que hoje passa o coelho...
- Alá! – Maria atropela – Bem que eu estava desconfiada que o coelho fosse vir. A alface que Zenaide lavava quer dizer que vai dar coelho. Além do mais, ontem deu leão e, todo mundo sabe que bicho bravo puxa bicho manso.
- Mas eu acho que o coelho vem porque eu sonhei com uma porca alimentando um monte de bebezinhos. Bebezinho é coelho...
- É porco! – grita Nelson, novamente agitado – Joga cinco contos seco na milhar do porco que você vai rachar a boca do...
- Mas você não tinha dito para mim que sairia o pavão? – replicou Zenaide.
- Então... pode fazer uma combinação de um ao quinto de porco e pavão que você vai arrebentar a...
- O Nelson só está querendo fazer todo mundo jogar para tirar a porcentagem dele.
- Que nada, Jandira. Está na cara que hoje vêm pavão e porco, de mãozinhas dadas ainda, um em primeiro, outro em segundo.
Todos faziam suas apostas e, a confusão, a mesma de ontem e que será exatamente igual a de amanhã, estava armada. Era um querendo enaltecer, pegar emprestado, derrubar o palpite do outro. Pessoas chegavam e saíam, cada uma com uma intuição, um sonho a ser interpretado por pontos de vistas distintos. Sonhos que, cá entre nós, tenho certeza que eram modificados, adornados e engrandecidos a efeito de causarem espanto, admiração, repulsa e riso, tudo para que as cortinas daquele delicioso e atrapalhado espetáculo matinal não se fechasse, onde o que menos importava era o bicho que iria dar.
Ah! Só mais uma coisa: naquele dia tinha dado cachorro.

( Airton de Barros )